Uma escultura que nasce arquitectura
Há edifícios que reflectem de forma mais clara a história do lugar e dos homens desse lugar.
Em cem anos e em Alcobaça o actual Armazém das Artes começou por ser a “oficina danada”, onde se trabalhavam engenhos e metais, depois recebeu cavalariças e serviu de apoio a actividades agrícolas, para, após grandes obras no subsolo, ao nível do Rio Baça, encanado no princípio dos anos ’40, passar a armazém de vinho.
As transformações recebidas pelo edifício permitiram sucessivos usos que retratam, em parte, a história de uma economia local.
Nas últimas quatro décadas serviu para armazéns de estabelecimentos comerciais do centro de Alcobaça.
A sua posição urbana, num período de grande pressão imobiliária, quase exigia uma avisada reconversão de uso, para habitação e comércio; e teve-a, pelo menos em projecto, aprovado e elogiado, pronto a ser construído. As condições económicas para a sua concretização e, sobretudo, a pouca convicção de que deveria ser este o destino do edifício, fizeram crescer um diferente propósito.
De início, talvez um lugar para a contemporaneidade do registo e da própria obra do escultor; depois, com motivos cada vez mais claros e de acordo com a atitude de José Aurélio perante a sociedade e a sua cidade, um espaço, vários, muitos e diferentes espaços, para a expressão multifacetada do conhecer, do pensar e do criar com sensibilidade e beleza.
O escultor conhecia bem e desde sempre o edifício e, na decisão quanto ao seu futuro, parece ter havido uma recíproca compreensão e uma maior aproximação: pela parte do edifício a aceitação (ou a exigência?) de uma nova e radical mudança, na tradição, afinal, do que tinham sido os seus préstimos passados; pela parte do escultor, o reconhecimento da identidade, também urbana, daquele edifício naquele lugar, e o respeito pela sua continuidade só possível e justificável com um novo programa, fortemente relacionado com Alcobaça e o país, no âmbito das artes e da cultura. Foi um diálogo no tempo, de muitos anos, onde, ao edifício, coube a intenção de se dar a conhecer e ao José Aurélio a de entender uma vocação que permitisse tomar uma decisão com futuro.
O registo de intenções, para concretizar o futuro com um presente, que normalmente se materializa num projecto de arquitectura, foi transformado num amigável “corpo a corpo” entre escultor e forma construída, na procura dos novos espaços. Um corpo a corpo em sentido literal já que a transformação do edifício começa a ser feita com acções directas sobre ele: demolindo aqui, permitindo diferente modelação do espaço, construindo ali, sempre com acções pontuais, modificando sempre, procurando na essência do corpo edificado o sentido novo e mais profundo, profícuo até, de uma diferente ordem e relação entre espaços; que pudessem acolher obras, sentimentos, pessoas.
O edifício aceita a energia transformadora do seu escultor, que nele realiza uma escultura de espaços habitáveis. Espaço fortemente centrípeto, que se debruça e remira internamente, sugere um labirinto a várias dimensões onde as visuais e os percursos horizontais, verticais e oblíquos, embora claramente percepcionados, não recompõem na nossa mente toda a estrutura dimensional e a completa, dir-se-ia “fechada”, compreensão dos espaços. Neste sentido, há uma arquitectura que lhe é homóloga: o Santo Sepulcro em Jerusalém. Onde, à fragmentação do seu espaço global se opõe, numa singular tensão, a coesão dada pela surpreendente, também inesperada, continuidade entre as diferentes e autónomas unidades de rito religioso.
Tal como em Jerusalém, aqui, no Armazém das Artes, a representação desenhada resulta em complexa e propositiva percepção, que se reinventa ao percorrer o edifício e se resolve, apenas, mediante a experiência que se vive nos espaços criados.
Ao arquitecto são transmitidas algumas dúvidas, não essenciais para a invenção destes espaços, que, com a resposta, pudessem garantir a certeza, no detalhe, de todo o propósito. O arquitecto acompanha e observa o processo de criação desta “escultura” e o modo como, pelos espaços criados e pelo desempenho funcional, ela se rebate em “arquitectura”, num procedimento liberto da obrigação, até mesteiral, de aplicar cómodas ferramentas disciplinares ou soluções “prontas a usar”, sem estigmas de estilo e ornato ou de obediência a critérios de apreciação e valoração críticas.
Ao arquitecto, por fim, já que a obra estava espacialmente definida, é pedida a formalização projectual de uma escultura nascida arquitectura.
Esta é, certamente e em sentido pleno – pelo conteúdo programático, forma, tempo, enquanto material que também constrói – uma das mais importantes esculturas de José Aurélio; porque de todas resulta e a todas acolhe.
Levantada na cidade de Alcobaça, é uma iniciativa pessoal e privada, uma sua invenção, inscrita num novo e desejado desenho de vida cultural que ultrapassa o seu lugar e a região como já o havia sido nos anos ’70 a Galeria Ogiva em Óbidos. Retoma-se agora, sob nova forma, com mais experiência e condições, um projecto cultural que há muito cresce com José Aurélio.
Um projecto multifacetado, pelos “materiais” que irá propor, pela variedade das aptidões dos seus espaços, pela complementaridade de acontecimentos que atrai. Por tudo isto, será um ponto forte de uma rede que aguarda uma concretização de conteúdos na vizinha e insubstituível abadia cistercense.
Texto de José Charters Monteiro